O gramático

A crônica que transcrevo a seguir foi escrita por Humberto de Campos jornalista, político, crítico, cronista, contista, poeta, biógrafo e memorialista. Nascido em Miritiba, hoje Humberto de Campos, MA, em 25 de outubro de 1886, faleceu no Rio de Janeiro/RJ, em 5 de dezembro de 1934.


O gramático

Alto, magro, com os bigodes grisalhos a desabar, como ervas selvagens pela face de um abismo, sobre os cantos da funda boca munida de maus dentes, o professor  Arduíno Gonçalves era um desses homens absorvidos completamente pela gramática. Almoçando gramática, jantando gramática, ceando gramática, o mundo não passava, aos seus olhos, de um enorme compêndio gramatical, absurdo que ele justificava repetindo a famosa frase do Evangelho de João:

— No princípio era o VERBO!

Encapado pela gramática, e às voltas, de manhã à noite, com os pronomes, com os adjetivos, com as raízes, com o complicado arsenal que transforma em um mistério a simplicíssima arte de escrever, o ilustre educador não consagrava uma hora sequer às coisas do seu lar. Moça e linda, a esposa pedia-lhe, às vezes, sacudindo-lhe a caspa do paletó esverdeado pelo tempo:

— Arduíno, põe essa gramatiquice de lado. Presta atenção aos teus filhos, à tua casa, à tua mulher! Isso não te põe para diante!

Curvado sobre a grande mesa carregada de livros, o cabelo sem trato a cair, como falripas de aniagem, sobre as orelhas e a cobrir o colarinho da camisa, o notável professor retirava dos ombros a mão cariciosa da mulher, e pedia-lhe, indicando a estante:

— Dá-me dali o Adolfo Coelho.

Ou:

— Apanha, aí, nessa prateleira, o Gonçalves Viana.

Desprezada por esse modo, Dona Ninita não suportou mais o seu destino: deixou o marido com as suas gramáticas, com os seus dicionários, com os seus volumes ponteados de traça, e começou a gozar a vida passeando, dançando e, sobretudo, palestrando com o seu primo Gaudêncio de Miranda, rapaz que não conhecia O padre Antônio Vieira, o João de Barros, o frei Luís de Sousa, o Camões, o padre Manuel Bernardes, mas que sabia, como ninguém, fazer sorrir as mulheres.

— Ele não prefere, a mim, aquela porção de alfarrábios que o rodeiam?   Então, que se fique com eles!

E passou a adorar o Gaudêncio, que a encantava com a sua palestra, com o seu bom-humor, com as suas gaiatices, nas quais não figuravam, jamais, nem Garcia de Rezende, nem Gomes Eanes de Azurara, nem Rui de Pina, nem Gil Vicente, nem, mesmo, apesar do seu mundanismo, D. Francisco Manuel de Melo.

Assim, viviam o professor, com seus puristas e Dona Ninita com o seu primo, quando, de regresso, um dia, ao lar, o desventurado gramático surpreendeu a mulher nos braços musculosos, mas sem estilo, de Gaudêncio de Miranda. Ao abrir-se a porta, os dois culpados empalideceram horrorizados. E foi com o pavor no coração que o rapaz se atirou aos pés do esposo traído, pedindo súplice, de joelho:

— Me perdoe, professor!

Grave, austero, sereno, duas rugas profundas sulcando a testa ampla, o ilustre educador encarou o patife, trovejando, indignado:

— Corrija o pronome, miserável! Corrija o pronome!

E, entrando no gabinete, começou, cantarolando, a manusear os seus clássicos...


Augusto Aguiar

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