Desde 1901, a profissão de engraxate era proibida na capital do estado de São Paulo. Alegava-se que o trânsito das pessoas pelas calçadas ficava prejudicado no momento que esses profissionais exerciam o seu ofício. Na realidade, a medida visava evitar a concorrência com os salões que abrigavam cadeiras de engraxates. A meu ver, uma sacanagem esse tipo de proibição.
A partir de 1935, uma lei regulamentou a profissão para maiores de quatorze anos. No entanto, muitos garotos com idade inferior exerciam a profissão “ilegalmente”. Caso fossem surpreendidos, eram levados para o Juizado de Menores. Percebe-se – num país em que o pobre não tinha acesso aos estudos - que não havia distinção de pena entre um menino que trabalhava na clandestinidade e aquele que era menor infrator. Outra sacanagem. Desta vez cometida pelo relator e pelos legisladores que aprovaram a lei. Entre ver um menino com menos de quatorze anos trabalhando (sem que seja explorado) e aprendendo uma profissão, eu fico com os dois.
Entre uma engraxada e outra, como também no final do expediente, os engraxates de rua dançavam a tiririca (incluem-se aqui os adultos). Nela, dois desafiantes se enfrentavam no jogo de pernas ao som do batuque nas caixas e nas latinhas de graxa. E tudo só terminava com a chegada da polícia que considerava bagunça esse tipo de coreografia. Mais outra sacanagem. Agora, por parte da polícia.
A caixa de engraxate era um fascínio para alguns meninos da minha época, eles sonhavam com essa profissão nessa fase da vida. No entanto, há algumas coisas que desejamos e outras que são necessárias. Os garotos das classes sociais menos favorecidas viviam essa dualidade. Primeiro, pelo desejo de exercer essa atividade. Segundo, precisavam ajudar os pais no orçamento familiar.
Por uma deformação cultural, alguns meninos da classe média eram proibidos pelos pais. Para matar a vontade, pediam aos engraxates para que os deixassem carregar um pouquinho a caixa, mexer nos utensílios tais como a latinha, escova, flanela, entre outras coisas. Assim sendo, pelo menos por instantes, usufruíam de um prazer que os libertava da camisa-de-força imposta através de uma ordem social.
Para os garotos pobres, engraxar sapatos encenava uma série de detalhes: possuírem uma caixa de engraxate com a haste em cujo extremo havia o suporte para o pé do cliente. Essa parte cumpria também outra finalidade: encaixava-se nos ombros deles enquanto procuravam fregueses.
Ao atender um freguês, o engraxate providenciava a colocação da proteção para não manchar as meias. Em seguida, a aplicação da graxa (com um retalho de pano) começava pela gáspea do sapato (parte frontal que vai dos dedos até o peito do pé).
Depois, pelo corte do calçado: parte superior que cobre a parte de cima do pé; na sequência, o alvo era a lingueta, aquele couro flexível que funciona como uma camada protetora entre o dorso do pé e os cordões. O contraforte – reforço colocado na região do calcanhar – era o próximo a receber uma camada dessa pasta, a graxa. Dando continuidade, esse produto era aplicado com uma escova dental pelas laterais do solado.
O momento solene era a hora de lustrar cujas etapas ocorriam acompanhadas de fundos musicais (batucadas). Os garotos faziam a marcação do samba com assovios ou estalos com a língua. Ou, então, batiam com a escova de lustrar na caixa de engraxar. Ou, ainda, com a flanela de lustrar na parte superior dos sapatos.
Há pesquisas acadêmicas a respeito dessas batucadas. Nelas, seus autores atestam que o samba paulistano e as escolas de samba da capital tiveram forte influência dos sambas que os engraxates executavam no exercício desse ofício. Tito Madi, por exemplo, grande cantor e compositor brasileiro, é autor de um samba de muito sucesso chamado Samba do Engraxate.
Há certa inversão conceitual no que diz respeito às batucadas dos engraxates. Fica a impressão de que eles eram motivados pelos sambas de carnaval. Pelo contrário, eles que foram os incentivadores dele. Não há muita visibilidade disso uma vez que era uma rotina no dia a dia dos engraxates. O Carnaval, ao contrário, é uma efeméride.
Quando a engraxada chegava ao fim, vinha a opinião do cliente. Caso precisasse de algum retoque, o engraxate o providenciava. Após receber pelo serviço, o menino se sentia um homem. Mesmo desprovido dos hormônios de um adulto.
Augusto Aguiar augusto-52@uol.com.br www.m-cultural.blogspot.com http://stilocidade.webnode.com