Praça Valêncio de Barros: a História por trás da Ficção

“A História é o alicerce sobre o qual construo meus romances”

(Alexandre Dumas – autor de Os Três Mosqueteiros)


Em Bebedouro, estado de São Paulo, no início do século vinte, a área do antigo Cemitério Municipal cede lugar a um espaço público contendo uma paisagem natural e de práticas sociais, o Jardim Misterioso. Este, a partir de 1912,  com a mesma finalidade ,passa a se chamar Praça Valêncio de Barros. A homenagem contempla o primeiro Prefeito Municipal da cidade (1908-1910), mas sem a estátua dele. O que, por sinal, deixa a impressão de um projeto não acabado.


Atualmente, não se encontra – se é que existiu - a Lei ou o Decreto Municipal da criação dessa praça. Nem na Prefeitura nem nos Arquivos Municipais nem na Câmara Municipal.  A não localização de Leis ou Decretos dessa natureza repassa à educação patrimonial local, instrumento de alfabetização cultural, um sério prejuízo. O cidadão fica sem referência quanto à questão histórico-temporal da cidade no que diz respeito às mudanças urbanísticas – e de suas nomenclaturas - ocorridas no espaço onde vive.


A título de exemplo, veja só, leitor: em 1899, na cidade de São Paulo, capital do nosso estado, a Lei nº 416, de 28 de agosto, passa a denominar Rua Dr. Rodrigo Silva a primitiva Rua da Assembleia. Como se vê, muito antes de 1912, os logradouros são criados através de leis. No momento atual, um decreto ou lei municipal regularizando a questão da Praça Valêncio de Barros - e de outros logradouros em situação idêntica - seria extremamente salutar para configurar um rosto documental à História da nossa cidade.


Anos depois, em 1953, no Dia dos Professores, inaugura-se o Monumento ao Padre Anchieta (chamarei de estátua daqui para frente), no centro da Praça Valêncio de Barros,  uma iniciativa do povo e dos professores daquela época. Anchieta é o patrono do ensino no Brasil, foi nosso primeiro mestre. Mas os protagonistas desse ato cometeram uma distração incrível. Se o homem é o patrono do  ensino, qual a razão da estátua estar de costas para uma agência de letramento, a escola Abílio Manoel?


Quando da inauguração da Praça Valêncio de Barros, o que impediu, na ocasião, de não se estatuar o homenageado? Não sei. Mas em qualquer tempo, ele é o único que deveria estar lá. É o mínimo aceitável para a qualidade estética e histórica do local. Dessa forma, teríamos uma Valêncio de Barros mais rica de significado.


Nota-se, portanto, que aqueles que estiveram à frente das iniciativas da criação dessa praça (1912) ,antigo Jardim Misterioso, deixaram uma brecha para um futuro erro: a instalação da estátua de Anchieta. Essa homenagem colocou o oco no lugar do vazio. 

Além dos idealizadores da criação da praça e do povo da época da instalação da estátua, devoto uma imensa admiração e respeito pelos professores, sejam eles de qualquer momento histórico, mas a homenagem ao patrono do ensino na Valêncio de Barros mostra a falta da mínima noção de o que fazer (e o que não fazer) num caso desses. Nessa praça, Anchieta está fora de lugar. E, como já disse, numa posição errada.


De mais a mais, a aura de mistério que envolve o local é algo a não ser menosprezado. Enfim, desde a época que se chamava Jardim Misterioso, a praça está sobre resíduos de restos mortais de corpos anteriormente remanejados para o atual Cemitério Municipal. 


Algumas pessoas, dotadas de faculdades especiais, possuem a capacidade de mediarem o contato entre o mundo material e o espiritual. Num tom confessional, a propósito da estátua de  Anchieta, comentam que, altas horas da noite, costuma resmungar a respeito das suas insatisfações. A sua presença ali – segundo  diz - mais do que caracteriza um vínculo empregatício com a Prefeitura Municipal, um pepino que – em 1953 – o povo e os professores empurraram para a municipalidade.


Desde aquela época, reclama Anchieta,  está escrevendo sem parar. Por sinal, numa posição incômoda, inclinado sobre a plataforma que representa a areia da praia. Decorrido um tempo significativo, sente os efeitos desse esforço repetitivo. Além disso, entre esse e muitos outros direitos trabalhistas a que faz jus, não usufrui de um descanso razoável que, a exemplo do final de uma jornada de trabalho e o começo da outra, deveria acontecer. 

Uma reclamação na Justiça do Trabalho, tendo como reclamante Anchieta,  configuraria um elevado passivo a ser pago pela Prefeitura Municipal, mesmo que a retroatividade, de acordo com a lei em vigor, se dê apenas aos últimos cinco anos.


Num outro contexto – acrescentam os clariaudientes (homens ou mulheres que ouvem vozes dos espíritos) -  ele pretende, também, fazer uma moção de desagravo aos católicos, apostólicos e romanos da cidade.

Canonizado em três de abril de dois mil e quatorze, reclama da ausência de católicos por ali. Frequentadores da praça  testemunham o fato e acrescentam que nenhum católico faz o sinal da cruz ou a genuflexão (ato de se ajoelhar) diante da imagem do agora São José de Anchieta.


Segundo o Santo, dizem os clariaudientes, essa postura denota indícios de um catolicismo que vem se submetendo à perda de fiéis. Essa religião  está sem aquela elasticidade quase unânime de outrora. Antigamente, os católicos, ao passarem diante da igreja ou da imagem de um Santo, faziam solenemente o sinal da cruz. Alguns acrescentavam a genuflexão.


Hoje, por exemplo, muitos olham para um lado; depois, para outro. Se não há ninguém olhando, eles fazem, às pressas, o sinal da cruz. Parecem inibidos com o crescimento das outras correntes religiosas cujos membros podem estar nas imediações. Ventos transformadores sopram desde o século passado. Algumas coisas, antes inimagináveis, fazem parte da rotina do momento atual em termos de religião.


Aquelas pessoas dotadas de faculdades especiais acrescentam que Valêncio de Barros costuma ter uns arranca-rabos com São José de Anchieta. Na concepção de Valêncio, não apenas na minha,  ele é quem deveria ter a estátua no centro da praça que leva o seu nome. 

- Saia daí, esse lugar é meu. – diz pra Anchieta.

- Cadê a lei? Cadê a lei? – retruca Anchieta a respeito da Lei ou Decreto Municipal da criação da Praça (1912), que ninguém acha.


Dizem também que -  após a canonização de Anchieta - Valêncio de Barros civilizou o vocabulário, mas o bate-boca continua.

São José de Anchieta sempre responde:

- Respeite-me! Hoje, sou uma estátua sagrada.  

E acrescenta:

- No Brasil só há três Santos canonizados: Eu, Madre Paulina e São Frei Galvão. E só este último tem poderes para resolver as nossas diferenças em relação à esta praça. E ao meu passivo trabalhista também.


Tá rindo, leitor? Por quê?


Augusto Aguiar

augusto-52@uol.com.br
www.m-cultural.blogspot.com
http://stilocidade.webnode.com
Clima Bebedouro

FCTV Web