Otto Lara Rezende

Otto Lara Rezende foi um dos grandes jornalistas da imprensa brasileira. Escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, ele assina, na edição de hoje, a crônica Vista cansada. Era um homem extremamente apegado à família: a esposa e quatro filhos. É dele esta frase:

"Como pai, me considero, modéstia à parte, uma mãe exemplar".

Certa vez, foi chamado pelo amigo Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais, para redigir uma declaração que esclarecesse a posição do governador em relação à posse do vice-presidente João Goulart, o Jango. Consta desse documento uma pérola de exemplo da posição "em cima do muro" escrita por Otto: "Minas está onde sempre esteve".

Seria chamado novamente, em 1964, pelo governador  mineiro, para escrever uma carta a João Goulart alertando-o dos riscos da agitação no campo. Dias depois, no Rio, sem saber de nada, João Pinheiro Neto, ministro de Jango, solicita a Otto o favor de escrever uma carta em resposta àquela que Jango havia recebido do governador de Minas Gerais. Como se vê, a carta inicial e a resposta foram redigidas por Otto Lara Rezende.

Não é possível continuar escrevendo a respeito dele. Otto é inesgotável. Então, vamos à crônica:


Vista cansada

Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa ideia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou. Suicidou-se (grifo meu).


Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.


Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.


Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima ideia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, 

bichos. E vemos? Não, não vemos.

Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.


Augusto Aguiar

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