A Crônica

A Crônica, edição de 1987, Editora Ática, Série Princípios, é um livro pequeno, mas diz muito. Aliás, diz tudo. O formato é quase de bolso, espessura de alguns milímetros, mas o conteúdo é imensurável. No final do livro, além do Vocabulário Crítico, há outro recurso interessante: a Bibliografia comentada, excelente fonte de pesquisa.

Se uma parcela, apenas uma, dos livros didáticos, fosse escrita com a leveza e profundidade dessa obra, a meninada adoraria estudar. Jorge de Sá, autor do livro, transpira talento. Na época era professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal Fluminense e crítico literário do Jornal do Brasil. O cara não só escreve a respeito da crônica, poetiza o tema. Leva-nos a percorrer os encantos desse gênero literário. Alguns excluíram-na dessa definição. Não são muito espertos.


Considerada um gênero menor, Jorge de Sá eleva a crônica à condição de célula mãe da nossa Literatura. A carta de Pero Vaz de Caminha é o documento vital dessa afirmação. Uma definição incabível, dirão os arianos dos gêneros literários. Então, vejamos:

“Indiscutível, porém é que o texto de Pero Vaz de Caminha é criação de um cronista no melhor sentido literário do termo, pois ele cria com engenho e arte tudo o que ele registra no contato direto com os índios e seus costumes, naquele instante de confronto entre a cultura européia e a cultura primitiva... A verdade da crônica é o instante.” – escreve o autor.

Chama a atenção para o fato da realidade – conforme a conhecemos, ou como é recriada pela arte – ser feita de pequenos lances.

“Estabelecendo essa estratégia, Caminha estabeleceu também o princípio básico da crônica: registrar o circunstancial. “” – ensina-nos.

E finaliza: “Nossa literatura nasceu, pois, de uma circunstância. Nasceu da crônica”.


Recebi um e-mail de um leitor desta coluna; nele, ele sugere uma matéria a respeito deste delicioso gênero narrativo, a Crônica. Agradeço-lhe pela sugestão, prezado leitor. Pessoas como você me enchem de estímulo e de vigor renovado para transitar pelos caminhos dessa dimensão social e coletiva, a Literatura. Então, vamos lá.


Em seu livro, A Crônica, o professor Jorge de Sá ensina que “ela se dirige a um público determinado. E disseca a questão: Mas que público é esse? Sendo a crônica uma soma de jornalismo e literatura (daí a imagem do narrador-repórter), dirige-se a uma classe que tem preferência pelo jornal em que ela é publicada (só depois é que irá ou não integrar uma coletânea, geralmente organizada pelo próprio autor)”.


Meu caro leitor, diz a tradição literária: “Antes de pular para o livro, a Crônica deve ritualizar sua trajetória: passar primeiro pelo jornal. Neste, tropeça no limite dos espaços disponíveis. Então, deve ser escrita da maneira mais breve possível. É dessa economia que nasce a sua riqueza estrutural.” – explica-nos Jorge de Sá.


E continua: “Nessa transposição, é claro que o escritor está buscando fazer da tenda precária e cigana, o jornal, uma casa sólida e mais duradoura, o livro”. Essa ritualização encena uma série de detalhes e é uma das suas características. Os tipos urbanos povoam a crônica, diz ele. Cita um trecho – entre muitos - de uma crônica de Fernando Sabino: Não estamos sós.


Sabino nos fala da solidão de dois amigos que se embebedam apoiados no jogo da linguagem: O impulso periódico e irresistível pelo álcool (a dipsomania) existe quando a pessoa bebe sozinha, e, como os dois estão juntos, poderão curar a ressaca bebendo outra cerveja. A partir do título da crônica – Não estamos sós – o escritor brinca com as palavras, exatamente para mostrar a solidão disfarçada em etílica (alcoolizada) solidariedade. Que também traz em si um pouco de poesia. Afinal, o poeta que vive bebendo pelos bares da cidade, alongando o caminho de volta para a casa, é outro tipo urbano.


Remete-nos a outras crônicas:

Fernando Sabino escreve a respeito de uma menininha de sete anos que ele encontra: “ (...) aquele pingo de gente trabalhava como doméstica na casa de uma família no Jardim Botânico. Lavava roupa, varria a casa, servia à mesa. Entrava às sete da manhã, saia às oito da noite.


De repente, pergunta à menina:

Mas não te dão comida lá?

- Quando eu peço eles dão. Mas descontam no ordenado, mamãe disse para eu não pedir.

-E quanto é que você ganha?

A resposta é pior do que se espera. Uma importância ridícula.


“Ladainha”, de Lourenço Diaféria, por exemplo. É outra crônica que o cronista consegue puxar o leitor para o seu lado:

“Dizem que vão faltar os fatos, todo mundo corre a procurar boatos. Agora: quando dizem que vai faltar vergonha, ninguém se toca. Está todo mundo acostumado”. Ainda na crônica Ladainha - revela, segundo Jorge de Sá, a sua relação com a cidade de São Paulo: “Tal conhecimento se adquire lentamente, porque a cidade – esta cidade de que o editor quer que eu fale – se entrega aos poucos, dificilmente de todo, e só após muita convivência e muita paquera é que ela realmente se abre em dengos e carinhos. E como é caprichosa!”.


Apostando que o diagramador deste jornal possa gostar de crônicas, vou arriscar mais alguns centímetros quadrados. Convido-o a ser meu cúmplice. Mas não me diga: - A crônica não é uma prosa rápida?


Cá pra nós: é um dos gêneros mais lidos. Os que a discriminam como um gênero menor, querem o quê ?

Relembrando: “Nossa literatura nasceu da crônica”.


Augusto Aguiar

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