A menina sem estrelas

Escritor, jornalista e dramaturgo, Nelson Rodrigues foi um libertário por convicção, mas reacionário – adjetivo que refutava - por suposição alheia. O jornalismo foi o veículo de suporte para as suas crônicas trágicas, posteriormente transformadas em livros e peças teatrais. Tragédias, excessos, mortes, incestos e traições pautavam o conteúdo da sua obra. Por sinal, mortes, tragédias e doenças pontuaram a vida do escritor. Essas menções constam em livros e matérias jornalísticas sobre ele.


Um conceituado crítico literário. Wilson Martins, define que a sua obra é marcada pela psicanálise amadora. E acrescenta: “O sucesso da peça teatral Vestido de Noiva, de autoria de Nelson Rodrigues, deve-se à montagem de Ziembinski”. Este foi um dos fundadores do novo teatro e inovou a encenação da peça de Nelson.


Nelson Rodrigues surge nesta crônica não sob as lentes da análise a respeito da sua obra literária nem como dramaturgo. Mas como ator de uma das maiores tragédias da sua vida: o nascimento da sua filha Daniela, acometida de paralisia cerebral e cegueira. Separado da primeira esposa, Elza, Nelson casou-se com Lúcia Cruz Lima, socialite carioca, de cujo relacionamento nasceu Daniela.


Com um lirismo insuperável, ele escreveu a crônica “A menina sem estrelas”, uma das mais lindas da literatura brasileira. Vejamos, então, alguns trechos:


“Volto aos meus quatro anos. E, de repente, os cegos apareceram. Ou por outra – antes dos cegos, vi uma menina, de pé no chão. A menina corre, atravessa a rua e vai beijar a mão de um padre. Durante toda a minha infância, na Rua Alegre, havia sempre um padre e sempre uma menina para lhe beijar a mão”.


E continua: “Muitos anos depois, conheci Lúcia. Lembro-me de que, numa de nossas conversas, falei-lhe assim: ‘Desde criança, tenho medo de ficar cego. Mas se isso acontecesse, eu... ‘ . Fiz a pausa e completei: ‘... meteria um tiro na cabeça’. Isso era e não era uma agressão sentimental, uma espécie de terrorismo. Afinal, o amoroso é sincero até quando mente. No fundo, no fundo, as minhas palavras queriam dizer outra coisa, ou seja; - ‘Mesmo cego, eu viveria se você me amasse’.


Por outro lado, sei que não é normal essa fixação numa fantasia infantil. Mas não tenho medo de confessar a minha morbidez, nem ela me envergonha. Eu a compreendo e a recebo como uma graça de Deus. Mas estas notas não estariam completas, se eu nãos lhes acrescentasse uma explicação. Quero dizer que o medo de uma cegueira utópica, apenas sonhada, me tornou humanamente melhor. Ou, se não me tornou melhor, me deu a vontade obsessiva de ser bom.


Mas, como ia dizendo, continuou o meu romance com Lúcia. Pouco a pouco, fui dizendo as coisas que são tudo para mim: ‘Todo amor é eterno e, se acaba, não era amor’. E dizia: “Quem nunca desejou morrer com o ser amado, não amou, nem sabe o que é amor’. As nossas conversas eram tristes, porque o amor nada tem a ver com a alegria e nada tem a ver com a felicidade. Quando nos casamos, eu lhe disse: ‘ Nem a morte é a separação’. Ela concordou que nada é a separação.


Depois a gravidez. Ah, quando eu soube que ela só podia ter filho com cesariana. Não me falem em fio de navalha. O fio da navalha é um título de romance ou de filme. Mil vezes mais frio, e diáfano, e macio, e ímpio, é o fio do bisturi da cesariana. O marido, cuja mulher só pode ter filho com cesariana, terá de amá-la até a última lágrima. ‘Se for menina, o nome é Daniela’, disse Lúcia. Achei um nome doce e triste (gosto dos nomes tristes). Uma noite, Lúcia foi internada, às pressas, na Casa de Saúde São José. Parto prematuro.


Tudo aconteceu numa progressão implacável. Daniela nasceu e não queria respirar. De manhã, quase, quase a perdemos. A irmã de Lúcia, desesperada, batizou minha filha no próprio berçário. Lúcia quis ver a filha no dia seguinte. E veio numa cadeira de rodas, empurrada por sua mãe, D. Lidinha. Voltou chorando, e dilacerada de felicidade. Também fui espiar Daniela pelo vidro do berçário. Uma enfermeira aparece e me pergunta, risonhamente:

- ‘O senhor é o avô?’

Respondi, vermelhíssimo: - ‘Mais ou menos’.


Mais uma semana, Lúcia e Daniela vinham para casa. Tão miudinha a garota que cabia numa caixa de sapatos. Dois meses depois, Dr. Abreu Fialho passa na minha casa. Viu minha filha, fez todos os exames. Meia hora depois, descemos juntos. Ele estava de carro e eu ia para a TV Rio; ofereceu-se para levar-me ao posto seis. No caminho, foi muito delicado, teve muito tato. Sua compaixão era quase imperceptível. Mas disse tudo. Minha filha era cega “.


Augusto Aguiar

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