O pneu pendurado ao galho de uma árvore serve de balanço. O menino debruçado sobre o arco da circunferência interna, local apropriado para as nádegas de quem balança, sente-se acima do mundo, do mundo mesmo. Nessa coreografia, prescreve uma espécie de Decálogo ao seu cãozinho, o Moshe. Sentado e com a cabeça erguida, o animal olha para o garoto. Este, em sua inocência, tem certeza de que o bichinho não transgredirá o Decálogo. A transgressão é, então, exclusividade do ser humano.
O menino cresce. No início da adolescência, lá pelos doze anos de idade, na companhia de amigos, faz estripulias para as meninas bem cuidadas. Estas riem gostosamente. Ele e os colegas acham que caem nas graças delas. Na verdade, elas se interessam apenas pelas coisas engraçadas que eles aprontam. Nada mais. Qualquer flerte ou algo parecido, as garotas os terão com adolescentes da sua classe socioeconômica; no pior dos casos, com aqueles cuja classe social não seja tão desigual à delas.
Entre quinze e dezessete anos, ele e outros amigos marcam presença nas festas juninas nos arredores da matriz. Destacam-se pelo arsenal de fogos de artifício que estouram. Por sinal, durante horas. Nessas ocasiões, a praça parece ser de propriedade da turma. Em determinados momentos, atrapalham a missa; noutros, o leiloeiro, os músicos. Além disso, não perdoam quando alguém– na barraca de tiro – mira o alvo com a espingarda de chumbo para acertá-lo e ganhar prêmios. Nessa hora, soltam bombas perto do atirador justamente no momento em que ele aperta o gatilho. Por fim, interrompem o descanso dos moradores da Casa Paroquial, os religiosos.
Certa vez, frei Antônio Pretto, pároco da matriz, os aborda e diz:
- Respeitados os momentos que a tradição incorpora, não vejo sentido de fogos de artifícios com a intensidade que vocês praticam.
- Uma coisa é comemorar, outra é perturbar o sossego público.
Um homem que passa por ali comenta:
- Perturbam o sossego das pessoas.
- Esses meninos são uns capetinhas. – responde o frade.
- Em Bebedouro, o cidadão solta fogos até quando leva chifres. – explica o homem.
Os rapazes olham ao redor, conversam entre si e concluem que não há dados, no Registro Civil informal da cidade, a boca do povo, de alguém nas proximidades registrado como vítima da infidelidade conjugal.
Em seguida, dão no pé. De longe, gritam:
- E o Roberto Carlos, frei Antônio?
Ele responde:
- É uma brasa, mora!
E dá a sua famosa risada.
Esse é o jeito do frei Antônio Preto, que Bebedouro tanto admira. Brilhante vigário durante muitos anos na Igreja Matriz de São João Batista. Mas, de repente, o brilho dele incomoda e o despacham para Mirassol. Há os que acreditam. Há os que não acreditam. Pouco tempo depois, morre num acidente automobilístico.
Após os bailes, ainda na adolescência, o jovem e os amigos deixam as moças em suas casas. Ou melhor, perto. Convivem com o trauma dos efeitos colaterais das serenatas: os pais das garotas jogam cada coisa neles. Naquele tempo, o penico – urinol para os mais sofisticados – é algo comum nos quartos das casas. Qualquer que seja o nome fica claro outra finalidade desse utensílio: dar banho naqueles afeitos às serestas. Os rapazes têm ascendências cujos pés estão fincados no Cristianismo. Sendo assim, dão a outra face. Não para os arremessadores de penicos, mas para as filhas destes beijarem. Os beijos delas não são beijos de Judas.
Logo que deixam as garotas, exercitam um hábito: antes de o sol nascer, roubam pães nas varandas. Em seguida, sentados nos bancos da praça, fazem o desjejum ao som de risadas, cantorias e brincadeiras. Nessas ocasiões, conversam com os bustos, estátuas e hermas. Durante os diálogos, demonstram uma coragem incomum. Jamais alguma pessoa discursaria e/ou gesticularia, a exemplo deles, diante e durante a vida de um estatuado ( pessoa que recebe a honra de uma estátua em sua homenagem ).
Em frente à herma (tipo de busto) do Barão do Rio Branco, na praça com o mesmo nome, começam a brincadeira:
-Este é o Juca. – grita o Joaquim.
Todos riem, rolam na grama e gritam num coro debochado:
- Que nada, esse é o José Maria Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco.
- Ele mesmo - esclarece Joaquim – mas em família e no círculo de amizades é o Juca ou, então, Paranhos Júnior.
Joaquim faz micagens para a turma. Mais risadas.
- É o símbolo da diplomacia brasileira. Seu pai é o Visconde do Rio Branco. – acrescenta.
- Não é ele que, contrariando a vontade do pai e do Imperador, casa-se com uma atriz belga? – pergunta um deles.
- Sim, é sim. – responde Joaquim.
- Em seguida, aquele que perguntou segura as bochechas da herma do Barão, aperta-as como se fossem flácidas, e diz:
- Fez bem, Barão. Fez bem. Fez muito bem.
Todos riem novamente, batem palmas. Dai a pouco, cai uma chuva forte.
Nesse dia, o rapaz experimenta a sua última farra (transgressão), por sinal, debaixo desse fenômeno da natureza, a chuva. Anos depois, chegam algumas de confete, mas nem sempre chove assim. São mais comuns as chuvas de pedras pelos caminhos da vida. Ao pressentir isso, a intuição dele se emociona ao prever os futuros obstáculos a transpor.
Dá adeus à adolescência, toca a vida. Enquanto há motivos para prosseguir, as cicatrizes da vida ficam apenas na pele. A tragédia é quando elas fazem vincos psicológicos. Ele costuma se lembrar dos tempos de menino, do Moshe, o cachorrinho que nunca transgrediria. Naquela época, em casa durante a noite, vê o castiçal que sustenta a parafina surrada lutar para alimentar a beleza da chama. Assim acontece com a flor que luta para brotar por entre as brechas do concreto que, hoje, ele vê quando caminha por uma rua. E não é que dá certo? A flor sobrevive. Permanece na placenta da vida. Ele também, apesar das chuvas de pedras.
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Augusto Aguiar augusto-52@uol.com.br www.m-cultural.blogspot.com http://stilocidade.webnode.com