Um anti-herói revistado

Poucas vezes, mas poucas mesmo, a condição ideal para se escrever é a desejável, ou seja, inexiste aquele momento pautado por um isolamento adequado. Mesmo assim, o literato não se abate e escreve. O importante é escrever com amor os temas que brotam quando algo cúmplice, a inspiração, ajuda diante do barulho implacável das preocupações ao redor. Nessa atmosfera, lembrei-me do Saci-Pererê, personagem do nosso Folclore.


Na minha infância, quando ele era o tema das conversas, eu apenas ouvia; ouvir é um processo fisiológico. Depois, aprendi a ler as histórias do Saci-Pererê. A leitura me permitia “escutá-lo”; escutar é um processo psicológico. Sendo assim, comecei a decifrá-lo. À minha maneira, claro.


Confesso que tinha muito dó dele. Ainda tenho! "Dó é substantivo masculino, meninos. Nada de escrever muita dó". – dizia dona Maria Brizola, minha professora do quarto ano do grupo escolar (no meu tempo se chamava assim). Alguma coisa dentro de mim sussurrava: "Ele só tem uma perna - perdeu a outra lutando capoeira – e aparece pelado: deve passar frio, fome". Eu respondia: "A perna amputada – característica marcante do seu visual – é tudo o que uma criança não deseja".


O Saci é um ente eterno. Portanto, irá manquitolar pela eternidade. Sendo um mito, manda às favas qualquer sucessão temporal. Estudiosos pesquisaram a sua história e projetaram o seu tempo de vida em setenta ou setenta e sete anos. Aqui, sou voz discordante; defendo o ente eterno. Ele é uma entidade sobrenatural, está livre de ser perecível. A questão tem desdobramentos, mas prefiro sintetizá-la dessa forma.


Nasce sabendo de tudo – dizem os folcloristas – e isso ameniza as minhas apreensões a respeito das suas carências. Não todas, lógico. Nunca li nem ouvi nada a respeito dos seus pais. Aliás, a sua genealogia é confusa. Lembra-me a figura dos meninos de rua: sempre sozinhos - órfãos em tempo integral - apenas na companhia de outros meninos, vivendo num abandono brutal. E, claro, transgredindo.


Seus poderes têm origem no gorro vermelho. Somente as coisas sobre-humanas mantêm vivos esses tipos de seres. No caso dele, o mito, o sobrenatural. No caso dos meninos de rua, a realidade. Fuma aquele negócio gozado. Alguns dizem que é cachimbo; outros, pito. Esse costume os caboclos herdaram dos índios.


Os adultos insistem que o Saci é maldoso, só age na escuridão da noite. Essa definição me chateava. As peraltices dele me encantavam. Sem dúvida, o "moleque" deve ser muito divertido, imaginava. Fantasiava-o pregando peças no Capitão Gancho, Brutus (a pedra no sapato do Popeye), Tom (pesadelo do camundongo Jerry) etc. Estes eram realmente anti-heróis.


Tudo isso tocava profundamente a minha emoção. Era difícil deixar de vivenciá-la, mesmo no contexto de uma lenda (não sabia o que era uma lenda). Alguma literatura da época arriscava mostrar o perfil de um saci peralta, mas não maldoso. Ele, assim, entrava, através dessa literatura, de uma forma mais amena no mundo daqueles que não o viam como anti-herói.


O seu nome, eu aprendi anos mais tarde, era uma mistura das culturas indígenas, negras e caboclas. Culturas minoritárias, desprezadas, discriminadas. Os indígenas eram caçados impunemente pelos bandeirantes, mas os jesuítas defendiam os índios; os negros eram escravizados pelos colonizadores, os jesuítas faziam vista grossa.


Por fim, o caboclo, nosso elemento rural, era discriminado pelo seu jeito de ser. No universo caboclo existiam índios, negros, brancos, amarelos... Bastava prestar atenção! Por exemplo: o indígena, na condição de caboclo, assumia o status de "pós-graduado”. Nem assim, essas duas condições, juntas e somadas, eram uma força. A situação do negro era pior ainda.


Cresci, mas o saci continua sempre um moleque dentro de mim. Não me dispus a ocultá-lo na Sombra da Criança Interior – a tal de sombra junguiana – na qual escondemos da claridade (leia-se convenções sociais) os sacis e outras personagens – mitos - que vivenciamos na infância e hoje não cabem no padrão social vigente. Essa conceituação decorre da psicologia analítica de Jung.


Por outro lado, a antropologia se fixa de uma forma mais geométrica, ou seja, científica, no estudo da sua origem, comportamento, aspecto físico e social.

Segundo o professor Robson A. Santos, folclorista, “o Saci evita a depredação das matas e protege os animais”. Deparo-me aqui com noções de desenvolvimento sustentável e de proteção aos animais. Algo importantíssimo para o leitor infantil, mesmo no mundo das lendas.


Este texto pode parecer inocente ao reverenciar uma personagem definida como trapaceira e outras eiras mais. Prefiro assim: olhá-la com inocência. Não cabe neste texto o rigor científico das análises, mas o das emoções. Escrevi "a personagem", etimologicamente a palavra vem do francês “pessoa”. Não se pode, portanto, grafar "o pessoa".


Através do olhar da infância dentro de um adulto, imagino esse moleque integrado ao meio social, estudando, cursando uma faculdade. Sociologia, por exemplo. Seria, então, um Saciólogo, apesar do vocábulo definir aqueles que estudam o Saci. Vamos imaginar o termo na classificação das palavras homônimas homógrafas: escrita igual, significação diferente. Impossível o Saci na Faculdade? A minha infância não acha !!! Enfim, aquela carapuça vermelha que usa - geometricamente cônica e chamada Pileus Romano – não lhe dá poderes especiais?


Augusto Aguiar

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