Embrulhando a Cultura

Aos 14 anos entregava jornais e revistas. Nos dias posteriores, recolhia alguns exemplares que seriam descartados pelos assinantes. Meu tio Jesus, irmão da minha mãe, também repassava-me jornais e revistas.   Lia-os sob a luz do poste, esse abajur comunitário, até ouvir a minha mãe chamar-me para dormir. Guardava-os cuidadosamente. Doíam-me as pernas. O esforço dos longos trajetos e do peso que transportava causavam as dores. Doía-me mais ao constatar que nos açougues embrulhavam a carne com jornais ou folhas de revistas. Não havia nenhuma película entre os dois. Ou seja, ao menos um plástico fino vedando o contato. Um absurdo, pensava.  Atraíam-me as fotos, alguns textos. Claro, não os compreendia na íntegra. No entanto, vi muita coisa de Otto Maria Carpeaux, Pedro Nava, Drummond, Carlos Heytor Cony entre outros. Cony, ainda hoje, está em pleno exercício literário.  O quarteto de escritores mineiros constituído por Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Rezende e Fernando Sabino era presença constante . Esse fato vem-me à lembrança. Descobri anos depois que o famoso quarteto foi um quinteto. Havia um quinto elemento na Tabela Periódica do talento dos Cavaleiros do Apocalipse de Minas Gerais. A fera existiu e chamava-se Wilson Figueiredo, o Figueiró, apelido dado por Hélio Pellegrino. Não era mineiro, mas capixaba. Deu um jeito de ser mineiro por afeto e entrou para o grupo. O fato não é muito divulgado.

John Gledson e Helen Caldwell, dois olhares estrangeiros sobre Machado de Assis, eram mencionados nos artigos literários. Enfim, eram os anos sessenta. Considerava atraentes as críticas literárias redigidas com mestria por nomes como Wilson Martins, Antonio Candido etc. Eram diferentes das resenhas de hoje. Lia as mais fáceis, aquelas que o crítico esmiuçava como se contasse uma história. Eu treinava no Aparelho de Código Morse, sonhando ser telegrafista, e transmitia (com o aparelho desligado) esses artigos como se fossem telegramas. Os clássicos, sempre atuais e inesgotáveis, ainda não me davam a noção , salvo pelas histórias preferidas, de que sempre representam o futuro do romance. Na ótica de Hugo Estenssoro, Dom Quixote, por exemplo, enquadra-se nessa definição.  Mas fui percebendo a presença constante dos clássicos. Aí tem algo necessário, permanente, pensava. Artigos sobre Filosofia deixavam-me confuso.

Soletrando, tentava pronunciar o nome de Nietzsche e não conseguia. Ah, sim, não me esqueço disso . Era um nome impronunciável, no bom sentido. Eu não tinha a dimensão de que ele havia sido o mais poeta dos filósofos, nem que a pronúncia do seu nome era "Nitchi" (ou algo parecido). Achava o bigode exagerado,  mas algo me dizia que o cara era importante.

Freud aparecia em várias ocasiões. Eu pensava: é o garoto-propaganda com custo zero para a indústria de charutos. Nunca conseguiu levar o charuto para o divã, só para os seus arredores. Mas não há como não reconhecer o seu mérito em tratar o sexo feminino como ser humano. Posso estar errado, mas acho que foi a Psicanálise que promoveu a igualdade entre homens e mulheres. Um dia li seus estudos sobre a sexualidade de Nero. Freud não defende nenhum preconceito contra ela. No entanto, não por questões afetas ao edifício psicanalítico, mas de saúde física, o imperador romano não podia mais transar. Então, pontificou: "Se não posso mais transar, ninguém mais transará". E tocou fogo em Roma.

É uma dedução minha, posso estar equivocado.

Pois bem, voltando ao fato dos jornais e revistas usados para embrulhar a carne e depois migrarem para o lixo, fica uma conclusão: na época tínhamos um lixo culturalmente rico. E uma cultura que não podíamos chamá-la de lixo. Apenas colocada no lugar errado. Por alguns, claro.


Augusto Aguiar

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