Pelé recomeça a carreira nos Estados Unidos

Em face de problemas financeiros advindos da falência da Construtora Netuno – empresa associada à Sanitária Santista, da qual era também proprietário, juntamente com seu ex-companheiro Zito,  e ainda a súbita crise que se abateu sobre a Fiolax carregando nessa corrente de insolvência até o Centro de Fisioterapia que expunha seu nome no alto do expediente da Direção, Pelé não teve outra alternativa senão optar pela proposta supermilionária que o New York Cosmos lhe fez. A proposta, examinada na sua superfície esportiva, significou um compromisso de três temporadas jogando futebol nos Estados Unidos, o equivalente a seis meses de atuação em cada uma, ao todo 85 partidas, ganhando 6 milhões de dólares (48 milhões de cruzeiros) e mais 67 por cento do merchandising que seu nome significa em áreas comerciais diversas.


Pelé: seis milhões de dólares o preço de um mito

Reportagem de GERALDO ROMUALDO

Revista O Cruzeiro – Ano 1975


Um mito em apuros

Constrangido pelo volume surpreendente de publicações na imprensa, envolvendo seus negócios particulares, Pelé não vacilou nem mais um instante em topar o desafio lançado pelo Cosmos. Era um direito que tinha independente da sólida imagem construída, anos após anos, de homem de uma palavra só – imagem irretocável de um mito invulnerável que se projetou com grandeza, no país e no mundo.

Mas há momento em que o mito, por mais inconfundível que ele seja, se veja tentado a voltar atrás. Pois foi o que fez. Então, a partir desse escândalo, Pelé não mais vacilou em embarcar depressa na canoa do Cosmos – e por que não? Afinal, se se tratava de um namoro tão velho, que motivo havia para não alcançar o casamento?

Foi na Jamaica, por volta de 1972, que Pelé manteve seu primeiro contato com os poderosos empresários do lendário Cosmos. Ele já havia se despedido da Seleção Brasileira – conta um inconfidente, seu amigo de Santos – e já cumpria contrato promocional com a Pepsi-Cola, quando o procuraram em nome da Warner Communication, uma agência de imensos recursos nos Estados Unidos, com múltiplos interesses tanto na área do cinema como do rádio e da televisão. O que os emissários da Warner queriam é saber se ele estaria disposto a tirar do marasmo o incipiente futebol norte-americano.

Embora os dólares da Warner soassem forte e que a oferta merecia todo respeito, Pelé pediu tempo para pensar. Os homens da Warner, pacientes e obstinados, não se recusaram a atendê-lo. A rigor, o que dificultou basicamente o prosseguimento das demarches naquele instante foi o fato de o contrato com o Santos ainda manter-se em vigor. Uma vez  que se libertasse de todo – o pressentimento foi geral – passaria a calcular melhor o alcance do convite vantajoso, mesmo que tivesse de romper uma palavra que gostaria de conservar pelo resto da vida.


Um adeus sem certeza

No dia 2 de outubro de 1974, Pelé fez suas despedidas do futebol. Foi um dia de muita festa e muita lágrima. O estadinho do Santos estremeceu de gente para vê-lo pela última vez. Sua apresentação foi digna e estudada. No intervalo do primeiro para o segundo tempo, seguido por um batalhão de meia centena de fotógrafos, ele se ajoelhou no centro do campo, estendeu os braços para a multidão e chorou copiosamente.

A dor da saudade não duraria muito. Persuasivos e determinados, carregados de dinheiro, os empresários da Warner voltaram novamente à carga. Desta vez, em Santos mesmo. Presente, a fim de garantir o êxito dos entendimentos, a turma de maior peso da Warner e do próprio Cosmos: Clive Toye, vice-presidente, e Nesuhi Ertegum, gerente de negócios. A cantada não poderia ser mais infalível. Clive soltou a primeira nota:

- O importante é que você passe três temporadas conosco, levando uma boa compensação.

- Quanto? – indagou Pelé, os olhos rútilos.

- Três milhões de dólares.

Pelé venceu o estremecimento com a seguinte desculpa:

- Bem. Vou ter que conversar primeiro com minha mulher. Se ela achar que vale a pena, voltaremos a nos entender.

Mais tarde, consultados prós e contras, Pelé tornou a receber Toye em seu escritório.

- Então, vamos ou ficamos? – indagou, sinuoso, o empresário.

- Depende. Se o Cosmos me pagar o dobro da oferta proposta, é provável que acertemos as contas.

- Seis milhões de dólares?

- Sim, senhor, seis milhões de dólares.

Clive Toye teve um gesto de enfado, as mãos caindo pelo corpo pesado:

- Não podíamos reavaliar esse detalhe?

Pelé disparou sua flecha bem no alvo:

- O senhor não é o vice-presidente executivo do Cosmo? Pois avaliemos agora!

Mas o gordo Toye, a pretexto de novas consultas, solicitou um breve adiamento.

- De acordo, Pelé?

- Perfeito. De pleno acordo.

Em casa, regressando de uma excursão, Pelé confessaria a Rose e seus assessores mais íntimos que só havia “pedido aquilo tudo para ver se o gringo desistia”.

- Sabe o que é, eu já deixei o futebol e não sinto nenhuma vontade de voltar.

Estava tenso e preocupado com o futuro:

- Tem outra coisa: juro que não me sinto inclinado a jogar futebol como profissional. Foram 18 anos de carreira e emoção. Será que isso não basta?

O sacrifício da família

Aconteceu que os norte-americanos não estavam dispostos a ceder, e realmente não cederam. Nesse ritmo, menos de um mês após o último encontro com Toye, Pelé tornou a ser ansiosamente procurado em casa; agora o que a Warner desejava é que o contrato fosse assinado o mais rápido possível, na base de cinco milhões de dólares.

Pelé mergulhou na mais profunda indecisão:
- O problema – confessaria – é que com isso irei sacrificar minha família, obrigar minha mulher e meus filhos a viverem fora do Brasil, coisa que nunca quis fazer, vocês sabem melhor que eu!

Finalmente, chegou a hora de se definir. Sozinho a argumentar romanticamente que não havia se casado para sacrificar a família, terminou voto vencido (por seis milhões de dólares). E aí a primeira providência foi avistar-se com o professor Altivo Ferreira, economista e secretário da Fazenda Municipal em São Paulo, para conhecer detalhes sobre o U. S. Tax – a taxa de imposto de renda nos Estados Unidos.

O professor Altivo não lhe negou as informações solicitadas, tendo demonstrado que, carecendo de rigor nas cláusulas do compromisso prometido, pouco lhe iria sobrar do montante dos Seis milhões de dólares. Mas os persistentes homens do Cosmos não se entregaram. Como no início, mostraram que o negócio poderia ser feito de outra maneira.

- Os impostos não impedirão que façamos esse trato.

Nesuhi Ertegum, perto de Rafael de la Sierra, outro membro da comitiva, foi logo advertindo:

- Não há problemas, Mr. Pelé!

E partiu para o deslumbramento:

- Ora, amigo, quem tem o Frank Sinatra, o Bob Dylan, o Mike Jagger, os Rolling Stones, o Paul Newman e o Kubrith sob contrato, jamais admitirá transformar o Rei do Futebol num boneco de sua trupe.


Como de outras feitas, os grandes olhos de Pelé brilharam intensamente, enquanto do seu lado direito e esquerdo corriam abraços e manifestações de contentamento.

- O seguinte – ele disse : primeiro eu quero que me deem cinquenta por cento de todo o merchandising a que tenho direito sobre a marca Pelé. E isso, vamos deixar bastante claro, durante seis anos. Algum problema?


Resposta taxativa de De la Sierra:

- Sem problemas.

- Ainda mais: quero que a Warner se comprometa a trabalhar junto com a Pepsi-Cola. Essa é uma questão delicada, muito importante para mim, de maneira que não abrirei mão dela em nenhuma circunstância!

Ok, Ok. Sem problemas, Mr. Pelé. A voz de Toye era firme e confiante.

Pelé não ficou nisso.

Quando se esperava que ele não tinha mais obstáculos a apresentar , de novo levantou a voz e declarou:

- Isto que agora vou lhe dizer é superimportante: jamais me obrigue a fazer propaganda a respeito de álcool ou cigarro.

- Certo. Sem problemas..

Nesuhi Ertegum, envolto na fumaceira desprendida do Havana de Toye, apertou o gatilho pela penúltima vez:

- Quer dizer que estamos entendidos, não há mais nada, tudo Ok? Pelé mexeu-se na cadeira, inquieto e sorridente:

- Por favor. Um pouco de tolerância. Negócios são negócios.

- Sem problemas, Mr. Pelé...


E Pelé:

- Vou querer uma garantia antecipada de cinco por cento nas ações do Cosmos, certo? É o seguinte: hoje o time vale quinhentos mil dólares, mas amanhã, poderá valer dez vezes mais.

- Sem problemas, meu amigo. Ok. – respondeu um dos representantes do Cosmo.

Os olhos cansados de sono, Clive, Ertegum e De la Sierra preparam-se para ir embora.

- Um momento, por favor.

Era Pelé, de novo.

- Vou precisar de um escritório no Rockfeller Center, um Cadillac para mim e minha família, avião para assuntos urgentes, colégio para as crianças e apartamento central, bem central. De resto, a garantia de um intenso intercâmbio esportivo Brasil-Estados Unidos e uma verba que se destine à Fundação Pelé, para crianças pobres se desenvolverem no ensino e nos esportes, perfeito?

- De acordo, sem problemas. – respondeu Ertegum. Nesse contexto, Pelé assinou o contrato com o Cosmos.


Pois é, meu caro leitor. E assim, tudo continuou às mil maravilhas na vida do craque brasileiro que, em certa época da sua vida, não reconheceu afetivamente (a justiça reconheceu) uma filha fora do casamento,  Sandra Arantes do Nascimento. Aos 42 anos, ela morreu de câncer na mama. Pelé não a visitou no hospital nem foi ao velório. Podia ter ido, a cerimônia foi simples. Nem precisaria usar um,  das dezenas que talvez possua, dos pares de sapatos de couro alemão preto que, acho eu, aprendeu a gostar por influência do jogador alemão Beckenbauer, seu companheiro de clube no Cosmos. Bastaria vestir seu caráter com a simplicidade do sentimento de um pai. Diante do exemplo de Pelé, recorro à velha máxima: “Ninguém vive o que prega”.


Créditos: Revista “O Cruzeiro” – edição julho 1975


Augusto Aguiar

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