Crases e Crises

Pensando bem, a crase é uma grande bobagem cheia de complexidades sem nenhum fundamento: crases obrigatórias; crases facultativas, crases especiais... coisas de gente que não tem o que fazer. Alguém conhece cem por cento as famigeradas regras gramaticais? Quem se habilita? Quem tem coragem de dizer que é contra? Monteiro Lobato era um deles. Sempre foi inimigo de todos os acentos e se recusava a usá-los. Dizia que a língua inglesa - isenta de qualquer acentuação, ultrapassara de longe a francesa, em que se perde muito tempo colocando até três acentos numa só palavra - é só lembrar os particípios passados accéléré, écrêté, téléphoné... O poeta Ferreira Gullar, ao contrario, é autor da sentença: "a crase não foi feita pra humilhar ninguém". Moacir Scliar, para quem não se recorda, foi um médico e escritor gaúcho, autor de mais de 67 livros contemplando o romance, a crônica, o conto, a literatura infantil, o ensaio, pelos quais recebeu inúmeros prêmios literários. Em sua crônica "Tropeçando nos acentos", afirma que a crase foi feita sim, para humilhar as pessoas. A população brasileira se divide em pobres e ricos, mas também se divide em dois grupos, os que sabem usar a crase, uma minoria, e a maioria que tem um medo existencial a este acento gráfico. É possível aprender? É possível. Mas considerem o meu caso: escritor, médico, homem razoavelmente informado, eu deveria acentuar bem as palavras. Pois tenho minhas dúvidas. É que durante a minha existência o país passou por umas três reformas ortográficas que tiveram o mérito de esculhambar a minha cabeça. 

O acento diferencial consegui esquecer, mas há outros que ainda me causam dúvidas. A primeira máquina de escrever que eu ganhei, ainda menino, era uma velha Royal, importada dos Estados Unidos, e que não tinha acentos. Eu escrevia, e depois acentuava à mão. 

Um desses motoristas que ficam parados por conta da crise do transito, resolveu criticar a falta de crase na foto da placa fincada na beira da rodovia pelo DINIT - Departamento Nacional de Infra-estrutura de Transportes. Que coisa mais tola! Quem iria pensar que, por falta de uma crase em "as margens", iriam primeiro construí-las antes da rodovia? A crase era um assunto  tão crítico que, em 2005, o deputado João Herrmann Neto,  falecido em 2009, propôs abolir esse acento do português do Brasil por meio do projeto de lei 5.154, pois o considerava "sinal obsoleto, que o povo já fez morrer". Bombardeado, na ocasião, por gramáticos e lingüistas, Herrmann Neto logo desistiu do projeto. 

Aquele professor de português, veio em socorro da crase com uma pegadinha marota, querendo fazer graça com a crise política e moral que estamos enfrentando: "Dilma Rousseff depôs à CPI". Sem a crase, disse ele, a frase adquire dois sentidos: Dilma destituiu a comissão parlamentar de inquérito ou apenas deu depoimento à comissão? O sinal de crase tira a dúvida. Que pena o segundo exemplo não ser verdadeiro: o verbo Depor que significa destituir alguém de um cargo, também se refere ao ato de testemunhar, fazer um depoimento. 

Nesses tempos de crise, nem a Operação Lava Jato deu bola pela falta de um "a" craseado antes do "Jato". Não custa seguir um sábio conselho: se alguém tiver dúvida, não use a crase. Nem será preciso perdoá-lo pelo esquecimento, ninguém vai notar sua falta.

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