Entrevista com a escritora, poeta e tradutora Cecília Figueiredo

Natural de Franca, estado de São Paulo, a escritora, poeta e tradutora Cecília Figueiredo é a entrevistada de nossa coluna. Durante mais de trinta anos, residiu em Ribeirão Preto, estado de São Paulo. É, portanto, riberopretana por afeto.

Graduada em Letras, com especialização em adultos, pós-graduada em Tradução, a autora ministra aulas de inglês. No momento atual, o seu foco principal direciona-se para traduções técnicas, um complexo ato interpretativo.

Na condição de literata, conquistou diversos prêmios, participou de Antologias e, com a experiência e zelo que lhe são inerentes, prefere - no que diz respeito à edição de seus livros - um recuo qualitativo ao invés de um salto quantitativo. Dentro desse contexto, assina dois livros solos: Paixão Vírgula Paixão (2007), Editora Funpec, livro de poesias publicado com o incentivo do escritor Menalton Braff, Prêmio Jabuti de Literatura (ano 2000) com o livro À Sombra do Cipreste”. Por sinal, seu amigo.

A Casa da Instabilidade, seu segundo livro, foi lançado em 2010. Na época, Cecília Figueiredo conciliou o seu status de destaque dos autores da Feira do Livro de Ribeirão Preto, uma das mais importantes do Brasil, com o lançamento do livro. Nele, a autora se manifesta através de uma prosa poética contemporânea.

As capas dessas suas duas obras literárias fazem um pêndulo entre si no que diz respeito ao estilo contemporâneo dessa roupa do livro. Nelas, nota-se uma perfeita hierarquia de informação. Portanto, muito bem conceituadas.

Cecília Figueiredo fala com mestria sobre Poesia, Tradução, autores consagrados, entre outros assuntos. A escritora e poeta é membro da Academia Ribeirãopretana de Letras. Em sua produção literária nos deparamos com uma escritora imaginativa e refinada. Ao final, a autora se autodefine. Então, vamos à entrevista.


A partir de que momento você decidiu tocar os seus leitores com esse fio de eletricidade desencapado chamado Poesia?

Uma pergunta difícil de responder com simplicidade. Posso dizer que me descobriram poeta quando publiquei meu primeiro livro de poemas (Paixão Vírgula Paixão, Funpec, 2007), muito estimulada pelo meu amigo Menalton Braff. O segundo livro A Casa da Instabilidade veio logo depois, também pela Funpec, em um estilo diferente, prosa poética e poesia. Não publico desde então, mas a poesia não me deixa, é um estado em mim e nunca uma condição


A Casa da Instabilidade, seu segundo livro, trata a respeito dos conflitos da religiosidade, entre outros temas. Em seus enfoques a esse respeito, você se aproxima ou se distancia de Nietzsche (pronuncia-se Nitche)?

Nietzsche, apesar da educação cristã, desconstruiu a ideia de Deus. Baseado em premissas de que Deus está morto, ele vem reforçar a posição da fé como uma ação consoladora, destinada aos mais fracos. A metafísica em Nietzsche é inexistente. Comparando minha obra A Casa da Instabilidade” ao pensamento de Nietzsche, minha obra apresenta fundamentos cristãos que podem estar mais ou menos presentes, uma busca alentada pelo reconhecimento do divino em nós, e por conseguinte, na supremacia da poesia. Assim sendo, discordo em ponto de vista e ainda ressalto que Deus não está morto e sim, atuante em nossas ações, e em mim, particularmente.


Na dupla matéria/espírito, qual é a primeira voz na sua poesia?

Ambas. Minha poesia é um reflexo do mundo e em tudo que nele há. Falo do pato para falar de mim mesma, das angústias do ser humano, da metafísica. Se do mundo sou parte, faço dessa parte a minha sublimação.


Na condição de poeta, prefiro à grafia poetisa (termo correto), você se considera, e ao mesmo tempo não se considera, uma mulher diferente daquelas que não escrevem poesia?

É interessante como o termo correto "poetisa" não me agrada. Chamo a mim mesma de poeta, atropelando as regras. O poeta para mim não teria gênero, somos todos os transmissores da revelação da vida em forma de arte, portanto, como as "antenas", rejeito a regra. Considero-me diferente de algumas pessoas que não escrevem poesia apenas no quesito da sensibilidade, embora muitas pessoas que conheço sejam hiper sensíveis e não escrevem. A escrita para mim é apenas uma questão de oportunidade e nisso me sinto muito agradecida. Sabemos que a poesia no Brasil ainda representa uma grande dificuldade, não somente entre os poucos leitores, mas no mercado editorial, portanto, há tantos poetas desconhecidos buscando uma pequena chance para a publicação. Nós, os que já publicamos e temos visibilidade, mesmo que pequena, sentimo-nos satisfeitos. Nesse ponto, posso me sentir diferente daquele ou daquela que ainda busca um espaço.


O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?

Tenho muita facilidade para escrever poemas, escrevo a qualquer hora e em qualquer lugar, não prescindindo de inspiração ou condições favoráveis. Isso me dá um prazer imenso, é como se minha boca falasse poesia sob o meu controle. Mas é claro que isso não significa que a poesia tem qualidade. O trabalho de burilar, cortar, acrescentar, essa é a verdadeira feitura da poesia. A voz ressoa no poeta, a razão conserta.

Como faço isso? Leio em voz alta o que escrevi e respeito o ritmo do texto - só assim, as sílabas através dos sons faz o poema nascer. Nisso há muito mais prazer, descobrir a certa e musicalmente ajustada, é incrível.


Quais dúvidas e certezas guiam o seu trabalho literário?

Todas as dúvidas e nenhuma certeza. Minha autocrítica é maior do que eu; talvez seja por isso que venho me recusando publicar a qualquer custo. Depois de conhecer poetas geniais você passa por um crivo de angústia e aridez, é preciso ter coragem para publicar e ainda mais coragem para reconhecer sua poesia.


Há uma mediação entre você e “você” nos poemas mais indevassáveis que eventualmente escreveu e ainda não se decidiu a publicá-los? Ou já os inaugurou?

A primeira censura é ainda mais cruel quando parte de nós mesmos. Confesso que temi a opinião pública do meu último livro A Casa da Instabilidade por me achar exposta demais; felizmente, os leitores usam os olhos e o entendimento da sua visão particular de mundo, de modo que a poesia passa a ter uma ressignificação. Mas é claro, ainda há muita coisa que escrevi e que ainda não pensei em publicar, pelo menos por enquanto.


A sua relação vida/literatura é complicada?

Complicada? Não. Essencial. Não saberia viver sem a literatura; estou cercada por ótimos livros, grandes autores, respiro e vivo a literatura maximamente, embora eu tenha pena que a vida seja tão breve e tanto ainda há para se ler. Embora meu ofício seja a língua inglesa, coloco a literatura em primeiríssimo lugar na minha vida.


O que você escreve atualmente?

Atualmente escrevo como exercício de escrita. Contos curtos, poemas, alguma prosa poética, tudo sem qualidade que julgo necessária para publicação. Penso que não tardará o ajuntamento de tudo a consequente publicação, mas creio que me exigirá uma boa revisão.


Que defeito é capaz de anular ou comprometer um livro?

Não vou me referir à revisão do livro, pois isso é responsabilidade do editor e em nada compromete o autor, mas é uma questão importante. No mais, a falta de consistência entre a introdução, desenvolvimento, ápice e conclusão do livro. Personagens mal descritos e história sem envolvimento também são cruciais. Estou me referindo à romances. No caso de um livro de poemas, a poesia tem que ser boa, surpreender, trazer uma emoção, uma inquietação ao leitor - se isso não acontece, já nasceu destruído.


No instante atual, entre a interpretação dos sonhos (Freud) e o costume da leitura das mãos pelas ciganas, qual dos dois temas escolheria para escrever um texto? Ou não escolheria nenhum deles? A pergunta funda-se na possibilidade de soar ridículo para alguns sonhar com a Torre de Pizza, um lápis etc. e estabelecer padrões com a sexualidade, com as fixações (linha adotada por Freud).

No instante atual que vivemos, quando a rudeza da vida está praticamente estampada em nossos rostos e em todo nosso entorno, eu escolheria os dois temas acima para escrever um texto ou mesmo um poema. Acredito que o escritor/poeta não dispensa temas - é do nosso cotidiano observar, internalizar, entender e criar todos os tipos de tópicos de nosso tempo - aliás, não seríamos nós os tradutores de nossa sociedade? A ciência, como a de Freud, embora lúcida também se apresenta lúdica, e os costumes populares, embora lúdicos, também apresentam soluções razoáveis. Tudo no mundo é matéria de escrita.


Um autor para sempre?

Salvo os grandes autores já consagrados através de suas obras universais, não acho que um autor seja pra sempre. Estamos sempre em busca de um texto que nos represente e que de alguma forma, nos diferencie dos demais e essa busca nos modifica e também nos amadurece. Há autores que ficaram na mesma e velha fórmula e pouco de transcendência foi acrescentando em sua obra. Gostaria de estar enganada, mas daqui a 1 ou 2 séculos, quem ficará na história da literatura brasileira? Muitos desaparecerão, é um fato triste, mas é um fato.


A sua atuação como tradutora contempla apenas obras técnicas. Estas são um gênero textual, não um gênero literário. Há como escapar da tradução fiel nesse tipo de atividade tradutória?

Tenho trabalhado como tradutora de material técnico dos mais diversos segmentos, desde a Engenharia até os campos mais complexos da Biologia. Não poderia declarar que esta única atividade me realiza como escritora, já que a literatura técnica tem um comportamento mais rígido onde a soluções para as traduções são bem mais previsíveis. Uma tradução puramente literária traria mais prazer, porém, não é o que o mercado demanda, infelizmente. Claro que trabalhar com as palavras, tecnicamente ou não, sempre traz alegria a alguém que ama escrever e mesmo depois de tanto tempo trabalhando com traduções, ainda tenho experiências de grande aprendizado.


À margem das traduções de caráter técnico, qual livro desejaria traduzir da língua de partida, o Português, para a língua de chegada, o Inglês e vice-versa?

Admiro o trabalho de alguns tradutores literários, pois muitos deles são ou foram escritores de grande monta. Assim, mestres na arte da escrita, contribuíram muito na literatura estrangeira tal como chega para nós. Exemplos? Paulo Mendes Campos, que traduziu Charles Dickens, Raquel de Queiroz traduziu quase quarenta títulos e Monteiro Lobato, um grande tradutor que não admitia plágio, e portanto de uma fidelidade questionável porém rica, tem mais de 50 obras traduzidas, como por exemplo, Lewis Carroll, As Aventuras de Alice no País das Maravilhas.

Não me considero uma tradutora literária já que não tenho experiência neste campo por absoluta falta de oportunidade, mas adoraria verter para o inglês poetas cujo estilo direto e sarcástico eu admiro muito, como por exemplo, Paulo Leminski. As soluções de traduções seriam um desafio e se algum editor se interessar, aqui estou eu! Quanto à tradução de autores estrangeiros, eu adoraria traduzir Leonard Cohen, esse grande artista canadense que nos deixou recentemente. É dele este verso: There is a crack in everything, that’s how the light gets in. Como traduzir esta genialidade? Talvez: “Em tudo há rachaduras para que a luz entre enfim”.


No que diz respeito à revisão, pressupõe-se que a edição de um livro traduzido cumpre o mesmo ritual de uma edição nacional. Caso a pergunta seja pertinente, como fica o relacionamento entre o tradutor e o revisor da obra, muitas vezes conflituoso. Ou o tradutor cumpre essa duas funções?

O livro técnico traduzido recebe um tratamento ainda mais rigoroso quanto à sua edição. Na maior parte das vezes é preciso respeitar a obra original não só em seu conteúdo, mas também na capa e demais detalhes, como formatação, número de páginas ou ainda a mesma fonte para que a obra possa conceber maximamente a sua primeira concepção. Mas é claro, cabe ao editor a decisão de manter ou não as características da obra, sendo ele o responsável pelo sucesso de vendagem. O relacionamento entre o tradutor e o revisor da obra técnica é portanto mais próximo do revisor e portanto, passível de inúmeros ajustes e correções, o que não ocorre nas obras literárias, nacionais onde o autor ou tradutor tem liberdade de expressão.


Em suas conexões com as produções estrangeiras é possível crer que o livro Fazenda Modelo, de Chico Buarque, é a Family Farm, de George Orwell, requentada?

Não diria requentada, mas de grande influência do célebre título ANIMAL FARM, a Revolução dos Bichos. Sabemos que George Orwell, jornalista e ensaísta inglês escreveu esta obra sob o signo da ironia referindo-se à sociedade inglesa de sua época, especialmente sobre o período de Stalin na Rússia.

Chico Buarque, igualmente, teve uma educação altamente política, sendo exilado para a Itália no período da ditadura no Brasil, e de forma semelhante, retrata esse período brasileiro através de recursos mais ingênuos que pudessem sintetizar e revelar a situação brasileira.

Não é de Lavoisier a célebre frase? "Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma." Na minha opinião, a Fazenda Modelo, esta obra é um espelho da grande obra de Orwell.


Sob o seu ponto de vista, o Brasil é um país mais voltado para as edições ou para as reedições de livros?

O Brasil neste último ano apresentou um aumento de vendas de livros desde a literatura internacional, alguma nacional, incluindo os livros infanto-juvenis e grande variedade de livros técnicos. A poesia não tem apresentado ainda uma grande representatividade em vendas, muito óbvio que isso aconteça, pois a poesia ainda ocupa um lugar mais hermético na preferência do leitor. Mas eu gostaria de salientar sobre a existência das pequenas edições, nem sempre computadas, como as de escritores de pouca exposição, aqueles que além de produzirem suas obras são obrigados a custear seus livros e vendê-los. Atualmente temos também o fenômeno da internet, espaço acessível e democrático, que nos leva a conhecer inúmeros talentos. Acredito que as reedições de sucessos literários sempre terão espaço nas livrarias e que a chegada de novos nomes, especialmente os nacionais, ainda têm pouca chance de chegar ao público através de grandes editoras.


Fale um pouco de Cecília Figueiredo em toda a sua extensão.

Gosto de falar de mim usando a metáfora do vidro que está em meu primeiro livro: "sou uma mulher simples, como todo poeta é simples - simples como a feitura do cristal vindo da areia". Penso que essa figura sintetiza minha essência. Sou poeta, isso já é um fato e tanto. Mesmo em meio à lida, em meio ao trabalho, cuidando das coisas práticas, sinto-me poeta, pois tudo que vejo e que não vejo me tocam, logicamente de maneiras diversas. Não sei se todo mundo é assim, mas comparando-me às pessoas com as quais convivo, observo que eu sou mais atingida pelas ações da vida. Mas gostaria de confessar aqui um pecado e que muitos não entenderão: não gostaria de ter nascido poeta. Gostaria de ter um coração mais distraído e portanto, menos pisado. Gostaria de ser uma escritora de histórias, narrar fatos e nunca colocar o sentimento na escrita, ficar à parte, me esconder nas personagens, mas isso para mim ainda não se tornou possível. Para mim, ser poeta e tornar público a sua poesia é escancarar-se. Acho isso temerário e corajoso ao mesmo tempo.

Também tenho adoração pela palavra - falada ou escrita. Isso, desde muito novinha; há palavras em português que me são muito saborosas (exemplo: espetáculo - essa palavra deriva do latim, SPECTACULUM, SPECTARE, algo para se observar visualmente. Mas é a melodia da palavra que me encanta, aliás, quase todas as palavras que possuam a letra " L " , não importando se no início, meio e fim. A letra "L" dá uma musicalidade nas vogais de maneira encantadora, pois o jeito que a língua bate nos dentes superiores é belíssima. Exemplos: lábios, limbo... Já no meio ou fim das palavras, em português, o "l" se comporta como "u" na maioria das vezes, portanto, mal, carnal, calma.... aí é um comportamento sorrateiro, gosto disso... Preocupo-me com as palavras talvez porque venho praticando a língua inglesa desde os meus 17 anos. Morei nos EUA e quando voltei, cursei Letras e mesmo durante a graduação eu já dava aulas de Inglês. Faço isso até hoje, portanto o inglês para mim tem a mesma relação com o português, embora literariamente somente em português eu consiga fazer poesia.


Augusto Aguiar

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